CNJ: ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEL – A REVIRAVOLTA
Por Daniel Ostronoff e Samuel Dimbarre
No último dia 27 de novembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) suspendeu os efeitos do Provimento 172/2024, que, desde junho, havia imposto a obrigatoriedade de escritura pública para a constituição de alienação fiduciária de imóveis fora do âmbito de operações realizadas por entidades do Sistema Financeiro Imobiliário (“SFI”), Sistema Financeiro de Habitação (“SFH”), Cooperativas de Crédito ou Administradoras de Consórcio de Imóveis.
Essa decisão, que reverteu temporariamente uma decisão anterior controversa, proferida pelo próprio CNJ em junho de 2024, trouxe certo alívio ao mercado imobiliário, mas reforçou a necessidade de previsibilidade regulatória. Neste artigo, analisaremos os detalhes do caso, os impactos econômicos e jurídicos envolvidos e as possíveis implicações futuras.
ENTENDA O CASO
Em 5 de junho de 2024, o CNJ, ao julgar o Pedido de Providências nº 0008242-69.2023.2.00.0000, determinou que a lavratura de escritura pública, para a constituição de alienação fiduciária de imóveis, seria obrigatória em operações fora do SFI, SFH, Cooperativas de Crédito e Consórcios. Essa decisão, justificada pela busca de maior transparência e segurança jurídica, foi amplamente criticada por gerar custos adicionais e entraves burocráticos, especialmente em operações realizadas no mercado financeiro e de capitais, como as garantidas por Certificados de Recebíveis Imobiliários (“CRI”).
Nos estados de Minas Gerais, Pará, Paraíba e Bahia, essa exigência já era aplicada, mas a decisão ampliou a regra para todo o país, afetando práticas há décadas consolidadas. Antes, tais operações eram realizadas por instrumento particular, conferindo maior agilidade e eficiência ao processo.
A DECISÃO
A decisão inicial trouxe impactos significativos ao mercado. A exigência de escritura pública gerou custos cartorários adicionais e aumentou a complexidade das operações, prejudicando tanto consumidores quanto investidores. Segundo a Nota Técnica SEI nº 7/2024/CGRFIN/SRMI/SRE-MF, do Ministério da Fazenda, o custo estimado da medida variava entre R$ 2,1 bilhões e R$ 5,2 bilhões, representando um ônus substancial ao setor imobiliário.
Além disso, a medida criou disparidades regionais, devido às diferenças nos custos de emolumentos entre estados, e desestimulou a competitividade ao favorecer agentes financeiros vinculados ao SFI. O risco de concentração bancária aumentou, reduzindo o acesso de pequenos investidores ao crédito imobiliário.
A SUSPENSÃO DOS EFEITOS DO PROVIMENTO
Atendendo a um pedido da União Federal, o CNJ suspendeu os efeitos do Provimento 172/2024, por meio de decisão liminar no Pedido de Providências nº 0007122-54.2024.2.00.0000. O Ministro Mauro Campbell Marques fundamentou a decisão na plausibilidade jurídica de que o art. 38 da Lei nº 9.514/1997 permite a constituição de garantias imobiliárias por instrumento particular com efeitos de escritura pública. Além disso, destacou os impactos econômicos negativos da medida e as inconsistências jurídicas associadas.
A decisão liminar restabeleceu, temporariamente, a possibilidade de utilizar instrumentos particulares para constituição de alienação fiduciária, preservando a regularidade de operações consolidadas no mercado. No entanto, a instabilidade causada pela decisão inicial permanece como uma preocupação central para o setor.
ANÁLISE CRÍTICA
A nova decisão do CNJ, embora necessária e bem-intencionada, continua a revelar um panorama de insegurança jurídica no mercado imobiliário brasileiro, mesmo com a suspensão dos efeitos do Provimento 172/2024. Essa reviravolta destaca o impacto negativo que mudanças abruptas e falta de previsibilidade podem causar, afetando diretamente a confiança de investidores e instituições financeiras. Embora a decisão liminar represente um alívio temporário, o mercado segue vulnerável à instabilidade regulatória.
O aumento de custos e a burocracia adicional trazidos pela decisão inicial são barreiras que dificultam o acesso ao financiamento e desestimulam investimentos. Mesmo a suspensão dos efeitos do provimento não reverte completamente os danos causados pela incerteza regulatória, especialmente para os agentes econômicos que necessitam de estabilidade para tomar decisões informadas.
A Lei nº 9.514/1997, que regula a alienação fiduciária de bens imóveis, foi concebida para proporcionar maior agilidade e segurança nas transações, sem a necessidade de escritura pública em situações específicas. O artigo 38 da Lei nº 9.514/1997 prevê que os “atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição (…) de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados (…) por instrumento particular com efeitos de escritura pública”[1] (grifou-se).
Nesta linha, desde o início da vigência deste dispositivo legal, os CRI, que foram criados pela própria Lei nº 9.514/1997 foram amplamente entendidos como “atos resultantes da aplicação” da Lei nº 9.514/1997.
Com isso, a decisão inicial, que buscava garantir maior segurança jurídica e “proteção dos cidadãos, especialmente os hipossuficientes”, acabou desconsiderando o histórico de aplicação consolidada deste dispositivo ao longo de quase três décadas. A suspensão liminar é um passo importante, mas ainda não elimina a percepção de risco e instabilidade que paira sobre o setor.
Em um momento em que o país precisa de medidas que incentivem o crescimento econômico e a geração de empregos, a nosso ver, a decisão inicial do CNJ proferida em junho vai na contramão dessas necessidades.
O papel relevante desempenhado pela União Federal, ao evidenciar os impactos econômicos e jurídicos negativos da exigência de escritura pública, reforça a importância de manter o entendimento em vigor há décadas no país.
Nesse sentido, é imperativo que o plenário do CNJ seja célere ao apreciar o mérito do caso e, principalmente, que opte por consolidar a interpretação adotada na liminar do Ministro Mauro Campbell. Apenas dessa forma será possível começar a reestabelecer a segurança jurídica e previsibilidade ao mercado.
CONCLUSÃO
A suspensão dos efeitos do Provimento 172/2024, embora positiva, reflete a necessidade urgente de previsibilidade regulatória no mercado imobiliário. A decisão inicial de exigir escritura pública para alienação fiduciária de imóveis fora do âmbito do SFI e SFH demonstrou o impacto negativo que mudanças abruptas podem ter na competitividade e na agilidade do setor, prejudicando a eficiência de operações historicamente consolidadas.
Apesar do alívio trazido pela liminar, o mercado segue enfrentando desafios relacionados à instabilidade das regras. Investidores e instituições financeiras precisam de um ambiente regulatório estável para fomentar o crescimento econômico e a geração de empregos. Nesse contexto, a decisão definitiva do plenário do CNJ é essencial para solidificar o entendimento da liminar, reafirmando a interpretação do art. 38 da Lei nº 9.514/1997 e restaurando a previsibilidade necessária ao mercado.
Portanto, é fundamental que o mercado e as autoridades busquem soluções que aliem segurança jurídica e eficiência. A digitalização de processos, a simplificação de procedimentos e a redução de custos cartorários são medidas cruciais para equilibrar a necessidade de segurança jurídica com a agilidade e a competitividade do mercado. Além disso, é essencial que as normas sejam elaboradas com maior previsão de impacto e atenção aos princípios de proporcionalidade e razoabilidade.
[1] BRASIL. Lei nº 9.514, de 20/11/1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. “Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.”